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Mail art: contracultura, antiarte e subversão



por Barbara Bublitz

Se você vai a uma exposição de arte e não entende muito bem algumas coisas expostas, bom, o que posso dizer é que 1º você não está sozinho e 2º a culpa não é sua. Existe, há algum tempo, alguns intelectuais pensando sobre as relações da arte com a vida das pessoas. Essas pessoas somos nós. 

Estudantes, moradores do interior, trabalhadores fabris, dona de casa, autônomo, professor de matemática, mãe-engenheira-civil-líder-religiosa ao mesmo. Todos nós. De sociólogos (1) a filósofos (2), existe gente pensando nisso. Nós deveríamos pensar também. 

De um modo fundamentado (3), mas bem generalizado (e me perdoem os especialistas, os meus ex-orientadores, meus colegas, so on), posso apontar uma culpa no Renascimento. A premissa da criação manual única de um artista genial que perdura desde então dificulta nosso desprendimento. Se não é pintura, se não está enquadrado, se não está no museu, se não está assinado, se não é original, ora, é arte? 

Essa discussão e o motivo pelo qual a arte está tão distante de nós, esses tantos demônios imortais com os quais devemos aprender a conviver, não é um assunto que pretendo tratar no momento. É importante considerar que o anseio para aproximar a arte de um campo mais democrático também não é da geração Facebook (aliás, sequer é da geração internet). 

Marcel Duchamp, L. H. O. O. Q. 1919.
Esta barbicha foi uma das primeiras ironias 
criadas com uma obra de arte clássica.

A mail art (ou arte postal), é mais uma das manifestações artísticas que surgiu de uma movimentação contra a cultura vigente. As agitações políticas da década de 1960, assim como o crescimento do acesso às universidades, levou muitos trabalhadores culturais (4) a caminharem no sentido oposto à arte institucionalizada, em busca de uma prática criadora menos hierarquizada e isolada em relação à sociedade. Alguns desses artistas faziam parte de um grupo conhecido como Fluxus, responsável por grande parte das transformações na arte da contemporaneidade. 

Os trabalhos de mail art surgem deste contexto e consistem basicamente em cartas ou cartões postais acompanhados de desenhos, colagens, pinturas, carimbos autorais e mensagens que possibilitem a subversão do sistema postal, dos carteiros e a troca de ideias entre os remetentes e destinatários destas correspondências. 

Mail art de György Galántai, 1981 (5)

Mail art de Chuck Welch, 1984

Mail art de Anna Banana, 1989

Mail art de H.R. Fricker, 1990

Mail art de Paul Jackson, 1990

A origem de tal ação, a exposição do descontentamento em relação ao sistema de arte, não está na mail art. Os dadaístas, no início do século XX, já questionaram a organização do campo artístico e abriram as possibilidades para as criações conceituais, ou seja, para os trabalhos artísticos construídos a partir de uma ideia, que se torna sua parte fundamental. 

Assim como os dadaístas, os criadores da mail art não objetivavam a criação de uma obra de arte e sim o contrário. O objetivo dessas pessoas era questionar e expor as fragilidades da arte. Para tanto, utilizavam o princípio de détournement, desenvolvido também por um movimento de contracultura, o qual propõe a destruição de um sistema pela utilização de seus próprios meios.

Detalhes de mail art em correspondências 
do artista Hervé Fischer, com trabalho pautado na Arte 
Sociológica, documentados por Cristina Freire (6)

Detalhes de mail art em correspondências 
do artista Hervé Fischer, com trabalho pautado 
na Arte Sociológica, documentados por Cristina Freire

Para se ter maior clareza do pensamento que regia o contexto das ações da mail art, coloco uma citação da campanha Desista da Arte/Salve os famintos, de Tony Lowes, que representa um extremo das linhas ideológicas citadas anteriormente: 

Ver e criar uma imagem são a mesma atividade. Aqueles que criam a arte também estão criando os famintos. Nosso mundo é uma ilusão coletiva. É uma grande ironia que o mito do artista celebre o sofrimento, enquanto são aqueles que nunca ouviram falar de arte, aqueles sofredores famintos e com doenças endêmicas, que são os verdadeiros pobres e infelizes do nosso mundo. E nessa perversão do que foi um dia uma busca religiosa, os artistas de hoje negam ser mais do que trabalhadores, negam a arte em si, e então se mobilizam para apagar para o homem a luz que existe dentro dele. A arte agora é definida pela elite autoperpetuante para ser comercializada como uma mercadoria internacional, um investimento seguro para os ricos que têm tudo. Mas chamar um homem de artista é negar a outro um dom igual de visão; e negar a todos os homens a igualdade é reforçar a injustiça, a repressão e a fome. Tudo o que é aprendido é alienígena. Nossa história é construída a partir da herança de homens que aprenderam somente a substituir um conceito por outro. Nós lutamos para agarrar o que não sabemos, quando nossos problemas não serão resolvidos por novas informações, mas pelo entendimento do que o homem já sabe. É hora de reexaminar a natureza do pensamento (...) Estamos vivendo num baile de máscaras: o que pensamos ser a nossa identidade é um jogo de noções recebidas pelo sistema educacional, preconcepções que nos prendem à história. A crença em nossa própria identidade gera tristeza sem fim: nosso isolamento, nossa alienação e nossa crença de que a vida de outro homem é mais interessante do que a nossa. É somente através da valorização igualitária de todo o mundo que qualquer um de nós encontrará a libertação. Um fim para a história é nossa exigência de direito. Continuar a produzir arte é ficarmos viciados em nossa própria repressão. (HOME, 2004, p. 120-121)

Percebemos que a mail art possibilita a comunicação direta com o público, sem as instituições como intermediários privilegiados. Os meios de produção de arte são descentralizados e as publicações passam a prezar a quantidade, não apenas a qualidade uma vez que quanto mais volumes produzidos (ainda que precários) maior a potência de leitor a alcançar. Esta é uma característica que se opõe claramente ao valor econômico supervalorizado da arte. Surgida com o objetivo de criar novas significações para a arte, a mail art favorece ainda mais a ampliação da noção de rede e amplifica outras mídias, tais como telefone, fax e internet. 

Aqui estão então os precedentes da arte telemática, arte de rede, net arte ou web arte. Mas esse é outro papo. 


* Imagem do topo enviada por Charles Farrell, ao blog 3ByTheFire.

Referências: 

(1) BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
(2) RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. São Paulo: EXO experimental org. Ed 34, 2005.
(3) FREIRE, C. Arte Conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2006.
(4) HOME, S. Assalto à cultura: utopia e subversão guerrilha na (anti) arte do séxulo XX. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.
(5) Essa imagem as próximas foram retiradas da internet em fontes diversas. 
(6) Imagens retiradas da publicação: FREIRE, C. (org.). Hervé Fischer no MAC USP: arte sociológica e conexões: arte-sociedade-arte-vida. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2012.

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